quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O que responde o Analista-praticante?


Francina Evaristo de Sousa[1]

            “O psicanalista só se autoriza por si mesmo”, escreve Lacan em sua Proposição (2008, p. 213). Longe de ser a mais enigmática frase do psicanalista francês, este dito tão pouco está livre de provocar mal-entendidos. Não basta a alguém nomear-se psicanalista para sê-lo. Lacan deixa claro que este princípio não “impede que a Escola garanta[2]que um analista dependa de sua formação” e que “nem por isto implica que qualquer um seja analista [...]: só o analista, ou seja, não qualquer um, pode autorizar-se por si mesmo” (LACAN, 2008, p.241). Este princípio lacaniano quebra a ortodoxia das Sociedades de Psicanálise ao indicar a relevância do desejo do analisante em seu percurso formativo, justapondo-o à análise didática, e, ao mesmo tempo, evidencia, como um resultado dessa ortodoxia (ainda que não seja o objetivo dessas sociedades), a permanente promoção da asfixia do desejo na echarpe da vaidade, posto que aí a formação conjuraria e conjugaria a “pregnância narcísica com a astúcia competitiva” (LACAN, 2008, p.215).

Deste modo, a autorização diz respeito ao desejo de analista, que se adensa ao longo da análise através de um itinerário metonímico de significantes, até que esteja transformado para ser passado. Aqui a formação do analista é o próprio processo de dar forma ao desejo – dar-lhe forma de desejo de analista, o qual não se confunde com o desejo de ser psicanalista (LACAN, 2008, p.232). O desejo de analista seria assim aquele que não busca ser preenchido por um possível qualquer, mas sim aquele que deseja o impossível da psicanálise.Assim, a formação não seria – ou não seria apenas – a busca pelo objeto de desejo, mas a transformação do desejo em objeto, ou melhor, o desejo comoa própria mudança de objeto em si” (LACAN, 1988, p.352). É desejar objetivar-se como causa de desejo,tornar-se sujeito enquanto objeto – sujeito que causa, mas que só causa como o objeto. Objeto a.

Tendo como pressuposto esse desejo de analista, e partindo de minha experiência como Analista-Praticante, esboçarei a seguir algumas considerações acerca daquele que, em seu caminho de formação psicanalítica, encontra-se em um momento anterior ao passe; aquele que ainda não testemunhou uma relação outra com sua castração.

Filiar-se a uma instituição psicanalítica não garante o título de psicanalista, mas é um passo rumo a esta garantia, um passo rumo ao passe. É condição necessária, ainda que não suficiente. Se o final de análise é marcado pela queda do sujeito suposto saber, que é atribuído à figura do analista; se é marcado pela travessia, por parte do analisante, de sua fantasia; pela experiência de destituição subjetiva que o leva a experimentar-se como falta-a-ser; pela percepção de sua castração no Outro (analista); em suma, se há eventos tão importantes que marcam essa passagem, como pode então chamar-se de análise aquilo que o analista-praticante oferece? Como pode o analista praticante vir a assumir o lugar de causa de desejo que lhe é destinado? Como pode o analista-praticante, ainda preso a um mundo colorido por sua fantasia, desprender-se da dimensão imaginária atendo-se ao simbólico, que é o que está em jogo na análise? Como suportar o lugar de não-saber quando a idéia de um saber todo, de uma resposta definitiva, ainda faz eco? Afinal, o que responde o analista-praticante para que sua atuação esteja em conformidade com a ética psicanalítica?

Longe de pretender responder na íntegra tais questionamentos, sigo o tripé freudiano constituído pela análise, supervisão e estudo teórico para delinear alguns comentários que considero relevantes. Acredito que o analista-praticante não deve, como um aprendiz de feiticeiro, que cedo demais se julga apto a tomar o lugar do mestre, iludir-se de que possa haver atalhos no caminho de formação psicanalítica, formação que é permanente. Não há atalhos teóricos e nem práticos – acredito que não se venha a ser psicanalista apenas pela teoria, nem apenas pela prática. A formação psicanalítica insiste e exige a indissociabilidade entre teoria e prática, e mais: impõe que a prática não seja somente o momento de aplicação de uma teoria apreendida anteriormente e, por outro lado, que a teoria não seja apenas a abstração do particular. Assim, a formação psicanalítica (e a psicanálise) perturba o conforto das dicotomias da epistemologia ocidental – teoria e prática, sujeito e objeto – tornando-se um inviável acadêmico. A formação psicanalítica é assim uma escolha que envolve uma ação: a própria análise; um reflexo dessa ação:a prática analítica e sua supervisão;e uma reflexão: o estudo (o qual se conjuga com o ensino).

Portanto, estar em análise é a primeira resposta ética que o analista-praticante deve aos seus pacientes. Estar em análise não é a única e talvez não seja a mais importante escolha – e como toda escolha envolve a dimensão ética – ao longo da vida de um analista, mas é a escolha fundante.

A experiência do divã é essencial, é lá que se forma o analista posto que alieste per-segue seu desejo. É no divã que, após dar voltas e voltas em torno do vazio de seu desejo, após despir-se das identificações que determinam seu Eu e experimentar sua falta constitutiva, sua divisão irremediável, que poderá de analista suposto advir em analista.  É a análise que permite ao sujeito o naufrágio da segurança que retira da fantasia, sua janela para o real (LACAN, 2008, p.221), possibilitando uma relação com o mundo sob outros ângulos.

Quanto à supervisão clínica, Lacan (2008, p.209) escreve que:

“é uma constante que a psicanálise tenha efeitos sobre toda prática do sujeito que nela se engaja. [...] Como não ver que a supervisão se impõe desde o momento desses efeitos, antes de mais nada para proteger aquele que aí comparece na posição de paciente? Alguma coisa está aqui em jogo de uma responsabilidade que a realidade impõe ao sujeito, quando ele é praticante, de assumir por conta e risco.”

Conduzir o paciente à entrada em análise é apenas o primeiro ato do teatro analítico. As cenas subsequentes devem ser dirigidas de maneira responsável e devem contar com uma ajuda exterior: a do supervisor. De acordo com Collet Soler (2011, p.4) “a supervisão consiste em apreender o ato por meio de seus efeitos no outro, o analisante. [...] Se há análise, a do paciente do supervisionando, então se pode dizer que havia ato e que houve analista.”. Ou seja, é na supervisão que o supervisionando pode confirmar ou dar-se conta de seus ditos e dos efeitos provocados em seu analisando. Por isso “a primeira análise é, precisamente, a segunda” (SOLER, 2011, p. 4).

Análise e supervisão permitem ao sujeito em formação lidar com a angústia que sua prática suscita e lhefornece condições de espichar os ouvidos

na escuta dos sons ou fonemas, das palavras, locuções e frases, sem omitir as pausas, escansões, cortes, períodos e paralelismos, pois é aí que se prepara a literalidade da versão sem a qual a intuição analítica fica sem apoio e sem objeto. (LACAN, 1998, p.474).

Quanto à prática cotidiana do analista-praticante, para que esta não redunde em psicoterapia, há uma indicação fundamental: não responder à demanda. Pois o que o candidato à análise requer em princípio não é outra coisa senão felicidade (LACAN, 1988, p. 350), coisa que não podemos lhe prometer, afinal “não é culpa da análise se a questão da felicidade não pode articular-se de outra maneira atualmente” (LACAN, 1988, p.350).O paciente espera uma resposta que dê sentido e acabe com seu sofrimento, que suture a divisão de seu ser, divisão esta que é estrutural e estruturante. Caso o analista tente responder à esta demanda com intervenções que apontem para uma solução quanto à falta, ao mal-estar inerente ao humano, através de conselhos e orientações, tentando remediar o sofrimento de seu paciente, ele ficará no campo da sugestão e portanto estará atuando no âmbito da psicoterapia e não da psicanálise (FINGERMAN, 2005, p. 53), uma vez que a psicoterapia define-se pelo “restabelecimento de um estado primário. Definição, justamente, impossível de ser colocada na psicanálise” (LACAN, 2008, p.215).

“Você não vai dizer nada? O que devo fazer? É pra eu vir aqui e ficar chorando, falando dessas coisas tristes? Pra que? Não, não, isso não é bom pra mim”, disse-me um paciente em sua última sessão. Não suportou que eu não lhe desse o conselho de ouro, a palavra amiga. E eu falhei em conduzi-lo a se questionar.Esta tarefa, de não responder à demanda, uma vez que nós mesmos, apoiados na transferência, a fomentamos, não é fácil, causa horror, o horror do ato analítico segundo Lacan. No entanto, cair na armadilha sedutora de fornecer ao analisando uma resposta plena de sentido não resolve o problema: segundo Lacan (1993), a psicoterapia pode até trazer algum bem, mas conduz ao pior (p.21). Este pior, nos lembra Fingermann, seguindo Freud e Lacan,“se manifesta quando o que é recusado no simbólico retorna no real” (2005, p.56).Freud insiste que cada caso deve ser tomado como único, recomenda a “abordar cada novo caso como se não tivéssemos adquirido coisa alguma com suas primeiras decifrações” (LACAN, 2008, p.217); adverte-nos a não nos apressarmos em compreender: o momento de concluir não chega assim tão rápido. Lacan é enfático: “’Abstenham-se de compreender!’ e deixem essa categoria nauseante para os senhores Jaspers e consortes” (1998, p.474). O analista deve lembrar-se que se lhe foi atribuído pelo analisante, via transferência, o lugar de suposto saber, desse saber ele nada sabe. Portanto cabe-lhe antes de tudo escutar, encantando-se menos com o conteúdo da fala do analisando que com sua forma, seus significantes. O que está em jogo na situação analítica não é a pessoa do analista, esta deve ficar da porta para fora. Não lhe cabe expressar sua opinião pessoal e tampouco de algum modo impor sua conduta moral ao psicanalisante.Não nos esqueçamos: Lacan situa o analista no lugar de rebotalho, de dejeto. Ele deve pagar algo para ocupar esta posição e o faz com suas interpretações e com sua pessoa, uma vez que pela transferência, ele é literalmente despossuído dela. (LACAN, 1988, p.349).

Em Televisão, Lacan fala à analistas-supostos, “aqueles que entendem disso” (1993, p.12), àqueles que serão capazes de compreendê-lo, e entendo que aqui Lacan nos remete ao desejo de psicanalista. O analista-praticante pode ainda não ter chegado ao final de sua análise, mas creio que há nele um desejo e que é este desejo que lhe permite suportar a angustia de sua prática. “O ‘desejo do psicanalista’, eis o ponto absoluto de onde se triangula a atenção para aquilo que, por ser esperado, não tem que ser adiado para amanhã” (LACAN, 2008, p. 233).

Quanto à clínica, não há uma fórmula, não há resposta pré-determinada. Lacan escreve que “por um certo aspecto, o analista tem muita consciência de que não pode saber o que faz em psicanálise. Há uma parte dessa ação que lhe resta, a si mesmo, velada” (1988, p.350). Freud (2006), na famosa passagem do texto Sobre o início do tratamento, compara a análise a uma partida de xadrez, na qual apenas as aberturas e os finais são passíveis de uma sistematização, as jogadas não. Significa que a condução de uma análise não pode ser pré-determinada. Mas sua forma sim: qualquer que seja a resposta do analista em sua clínica, ela deve vir emoldurada por uma ética, a ética da psicanálise.

BIBLIOGRAFIA

FINGERMANN, D.& DIAS, M.D. Por causa do pior. São Paulo: Iluminuras, 2005.

FREUD, S. Sobre o início do tratamento.Ed.Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud v. XII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2006.

LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.461-495.

LACAN, J. O Seminário livro 7 – A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988.

LACAN, J. Ato de Fundação de 21 de junho de 1964. In Internacional dos Fóruns Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Catálogo 2008-2012 ed. Em protuguês. Rio de Janeiro: EPFCL- Brasil, s/d, p.205-212.

LACAN, J. Nota Italiana. In Internacional dos Fóruns Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Catálogo 2008-2012 ed. Em protuguês. Rio de Janeiro: EPFCL- Brasil, s/d, p.241-244.

LACAN, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.  In Internacional dos Fóruns Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Catálogo 2008-2012 ed. em português. Rio de Janeiro: EPFCL- Brasil, s/d, p.213-224.

LACAN, J. Televisão. Versão brasileira, AntonioQuinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

SOLER, C. O tempo longo. In: Wunsch 11 Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. CAOE: 2010-2012.

 

 

 

 



[1] Psicanalista. Pós-graduada em Saúde Mental –UNICAMP, Especialista em Saúde do Trabalhador –FIOCRUZ. Endereço: Rua João Rosa Góes, nº1445 - Dourados/MS. Fone: 84128521/34213363.
 
[2] Grifo nosso.

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