Francina
Evaristo de Sousa[1]
“O
psicanalista só se autoriza por si mesmo”, escreve Lacan em sua Proposição
(2008, p. 213). Longe de ser a mais enigmática frase do psicanalista francês,
este dito tão pouco está livre de provocar mal-entendidos. Não basta a alguém
nomear-se psicanalista para sê-lo. Lacan deixa claro que este princípio não
“impede que a Escola garanta[2]que
um analista dependa de sua formação” e que “nem por isto implica que qualquer
um seja analista [...]: só o analista, ou seja, não qualquer um, pode
autorizar-se por si mesmo” (LACAN, 2008, p.241). Este princípio lacaniano
quebra a ortodoxia das Sociedades de Psicanálise ao indicar a relevância do
desejo do analisante em seu percurso formativo, justapondo-o à análise
didática, e, ao mesmo tempo, evidencia, como um resultado dessa ortodoxia
(ainda que não seja o objetivo dessas sociedades), a permanente promoção da
asfixia do desejo na echarpe da vaidade, posto que aí a formação conjuraria e
conjugaria a “pregnância narcísica com a astúcia competitiva” (LACAN, 2008,
p.215).
Deste modo, a
autorização diz respeito ao desejo de analista, que se adensa ao longo da
análise através de um itinerário metonímico de significantes, até que esteja transformado
para ser passado. Aqui a formação do analista é o próprio processo de dar forma
ao desejo – dar-lhe forma de desejo de analista, o qual não se confunde com o
desejo de ser psicanalista (LACAN, 2008, p.232). O desejo de analista seria
assim aquele que não busca ser preenchido por um possível qualquer, mas sim
aquele que deseja o impossível da psicanálise.Assim, a formação não seria – ou não seria apenas – a
busca pelo objeto de desejo, mas a transformação do desejo em objeto, ou
melhor, o desejo como“a própria
mudança de objeto em si” (LACAN, 1988, p.352). É desejar objetivar-se como
causa de desejo,tornar-se sujeito enquanto objeto – sujeito que causa, mas que
só causa como o objeto. Objeto a.
Tendo como
pressuposto esse desejo de analista, e partindo de minha experiência como
Analista-Praticante, esboçarei a seguir algumas considerações acerca daquele
que, em seu caminho de formação psicanalítica, encontra-se em um momento
anterior ao passe; aquele que ainda não testemunhou uma relação outra com sua
castração.
Filiar-se a uma
instituição psicanalítica não garante o título de psicanalista, mas é um passo
rumo a esta garantia, um passo rumo ao passe. É condição necessária, ainda que
não suficiente. Se o final de análise é marcado pela queda do sujeito suposto
saber, que é atribuído à figura do analista; se é marcado pela travessia, por
parte do analisante, de sua fantasia; pela experiência de destituição subjetiva
que o leva a experimentar-se como falta-a-ser; pela percepção de sua castração
no Outro (analista); em suma, se há eventos tão importantes que marcam essa
passagem, como pode então chamar-se de análise aquilo que o analista-praticante
oferece? Como pode o analista praticante vir a assumir o lugar de causa de
desejo que lhe é destinado? Como pode o analista-praticante, ainda preso a um
mundo colorido por sua fantasia, desprender-se da dimensão imaginária atendo-se
ao simbólico, que é o que está em jogo na análise? Como suportar o lugar de
não-saber quando a idéia de um saber todo, de uma resposta definitiva, ainda
faz eco? Afinal, o que responde o analista-praticante para que sua atuação
esteja em conformidade com a ética psicanalítica?
Longe de
pretender responder na íntegra tais questionamentos, sigo o tripé freudiano
constituído pela análise, supervisão e estudo teórico para delinear alguns
comentários que considero relevantes. Acredito que o analista-praticante não
deve, como um aprendiz de feiticeiro, que cedo demais se julga apto a tomar o
lugar do mestre, iludir-se de que possa haver atalhos no caminho de formação
psicanalítica, formação que é permanente. Não há atalhos teóricos e nem
práticos – acredito que não se venha a ser psicanalista apenas pela teoria, nem
apenas pela prática. A formação psicanalítica insiste e exige a indissociabilidade
entre teoria e prática, e mais: impõe que a prática não seja somente o momento
de aplicação de uma teoria apreendida anteriormente e, por outro lado, que a
teoria não seja apenas a abstração do particular. Assim, a formação
psicanalítica (e a psicanálise) perturba o conforto das dicotomias da epistemologia
ocidental – teoria e prática, sujeito e objeto – tornando-se um inviável
acadêmico. A formação psicanalítica é assim uma escolha que envolve uma ação: a
própria análise; um reflexo dessa ação:a prática analítica e sua supervisão;e
uma reflexão: o estudo (o qual se conjuga com o ensino).
Portanto, estar
em análise é a primeira resposta ética que o analista-praticante deve aos seus
pacientes. Estar em análise não é a única e talvez não seja a mais importante
escolha – e como toda escolha envolve a dimensão ética – ao longo da vida de um
analista, mas é a escolha fundante.
A experiência do
divã é essencial, é lá que se forma
o analista posto que alieste per-segue seu desejo. É no divã que, após
dar voltas e voltas em torno do vazio de seu desejo, após despir-se das
identificações que determinam seu Eu e experimentar sua falta constitutiva, sua
divisão irremediável, que poderá de analista suposto advir em analista. É a análise que permite ao sujeito o naufrágio
da segurança que retira da fantasia, sua janela para o real (LACAN, 2008,
p.221), possibilitando uma relação com o mundo sob outros ângulos.
Quanto à supervisão
clínica, Lacan (2008, p.209) escreve que:
“é uma constante
que a psicanálise tenha efeitos sobre toda prática do sujeito que nela se
engaja. [...] Como não ver que a supervisão se impõe desde o momento desses
efeitos, antes de mais nada para proteger aquele que aí comparece na posição de
paciente? Alguma coisa está aqui em jogo de uma responsabilidade que a
realidade impõe ao sujeito, quando ele é praticante, de assumir por conta e
risco.”
Conduzir
o paciente à entrada em análise é apenas o primeiro ato do teatro analítico. As
cenas subsequentes devem ser dirigidas de maneira responsável e devem contar
com uma ajuda exterior: a do supervisor. De acordo com Collet Soler (2011, p.4)
“a supervisão consiste em apreender o ato por meio de seus efeitos no outro, o
analisante. [...] Se há análise, a do paciente do supervisionando, então se
pode dizer que havia ato e que houve analista.”. Ou seja, é na supervisão que o
supervisionando pode confirmar ou dar-se conta de seus ditos e dos efeitos
provocados em seu analisando. Por isso “a primeira análise é, precisamente, a
segunda” (SOLER, 2011, p. 4).
Análise e
supervisão permitem ao sujeito em formação lidar com a angústia que sua prática
suscita e lhefornece condições de espichar os ouvidos
na escuta dos sons ou fonemas, das
palavras, locuções e frases, sem omitir as pausas, escansões, cortes, períodos
e paralelismos, pois é aí que se prepara a literalidade da versão sem a qual a
intuição analítica fica sem apoio e sem objeto.
(LACAN, 1998, p.474).
Quanto à prática
cotidiana do analista-praticante, para que esta não redunde em psicoterapia, há
uma indicação fundamental: não responder à demanda. Pois o que o candidato à
análise requer em princípio não é outra coisa senão felicidade (LACAN, 1988, p.
350), coisa que não podemos lhe prometer, afinal “não é culpa da análise se a
questão da felicidade não pode articular-se de outra maneira atualmente”
(LACAN, 1988, p.350).O paciente espera uma resposta que dê sentido e acabe com
seu sofrimento, que suture a divisão de seu ser, divisão esta que é estrutural
e estruturante. Caso o analista tente responder à esta demanda com intervenções
que apontem para uma solução quanto à falta, ao mal-estar inerente ao humano,
através de conselhos e orientações, tentando remediar o sofrimento de seu
paciente, ele ficará no campo da sugestão e portanto estará atuando no âmbito
da psicoterapia e não da psicanálise (FINGERMAN, 2005, p. 53), uma vez que a
psicoterapia define-se pelo “restabelecimento de um estado primário. Definição,
justamente, impossível de ser colocada na psicanálise” (LACAN, 2008, p.215).
“Você não vai
dizer nada? O que devo fazer? É pra eu vir aqui e ficar chorando, falando
dessas coisas tristes? Pra que? Não, não, isso não é bom pra mim”, disse-me um
paciente em sua última sessão. Não suportou que eu não lhe desse o conselho de
ouro, a palavra amiga. E eu falhei em conduzi-lo a se questionar.Esta tarefa,
de não responder à demanda, uma vez que nós mesmos, apoiados na transferência,
a fomentamos, não é fácil, causa horror, o horror do ato analítico segundo
Lacan. No entanto, cair na armadilha sedutora de fornecer ao analisando uma
resposta plena de sentido não resolve o problema: segundo Lacan (1993), a
psicoterapia pode até trazer algum bem, mas conduz ao pior (p.21). Este pior,
nos lembra Fingermann, seguindo Freud e Lacan,“se manifesta quando o que é recusado no simbólico retorna no
real” (2005, p.56).Freud insiste que cada caso deve ser tomado como único,
recomenda a “abordar cada novo caso como se não tivéssemos adquirido coisa
alguma com suas primeiras decifrações” (LACAN, 2008, p.217); adverte-nos a não nos
apressarmos em compreender: o momento de concluir não chega assim tão rápido. Lacan
é enfático: “’Abstenham-se de compreender!’ e deixem essa categoria nauseante
para os senhores Jaspers e consortes” (1998, p.474). O analista deve lembrar-se
que se lhe foi atribuído pelo analisante, via transferência, o lugar de suposto
saber, desse saber ele nada sabe. Portanto cabe-lhe antes de tudo escutar,
encantando-se menos com o conteúdo da fala do analisando que com sua forma,
seus significantes. O que está em jogo na situação analítica não é a pessoa do
analista, esta deve ficar da porta para fora. Não lhe cabe expressar sua opinião pessoal e tampouco
de algum modo impor sua conduta moral ao psicanalisante.Não nos
esqueçamos: Lacan situa o analista no lugar de rebotalho, de dejeto. Ele deve
pagar algo para ocupar esta posição e o faz com suas interpretações e com sua
pessoa, uma vez que pela transferência, ele é literalmente despossuído dela.
(LACAN, 1988, p.349).
Em Televisão,
Lacan fala à analistas-supostos, “aqueles que entendem disso” (1993, p.12),
àqueles que serão capazes de compreendê-lo, e entendo que aqui Lacan nos remete
ao desejo de psicanalista. O analista-praticante pode ainda não ter chegado ao
final de sua análise, mas creio que há nele um desejo e que é este desejo que
lhe permite suportar a angustia de sua prática. “O ‘desejo do psicanalista’,
eis o ponto absoluto de onde se triangula a atenção para aquilo que, por ser
esperado, não tem que ser adiado para amanhã” (LACAN, 2008, p. 233).
Quanto à clínica, não há uma fórmula,
não há resposta pré-determinada. Lacan escreve que “por um certo aspecto, o
analista tem muita consciência de que não pode saber o que faz em psicanálise.
Há uma parte dessa ação que lhe resta, a si mesmo, velada” (1988, p.350). Freud
(2006), na famosa passagem do texto Sobre
o início do tratamento, compara a análise a uma partida de xadrez, na qual apenas
as aberturas e os finais são passíveis de uma sistematização, as jogadas não. Significa
que a condução de uma análise não pode ser pré-determinada. Mas sua forma sim:
qualquer que seja a resposta do analista em sua clínica, ela deve vir
emoldurada por uma ética, a ética da psicanálise.
BIBLIOGRAFIA
FINGERMANN, D.& DIAS, M.D. Por causa do pior. São Paulo:
Iluminuras, 2005.
FREUD, S. Sobre o início do tratamento.Ed.Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud v. XII. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 2006.
LACAN, J.
Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. In: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.461-495.
LACAN, J. O Seminário livro 7 – A ética da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 1988.
LACAN,
J. Ato de Fundação de 21 de junho de 1964. In
Internacional dos Fóruns Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Catálogo
2008-2012 ed. Em protuguês. Rio de Janeiro: EPFCL- Brasil, s/d, p.205-212.
LACAN,
J. Nota Italiana. In Internacional dos
Fóruns Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Catálogo 2008-2012 ed. Em
protuguês. Rio de Janeiro: EPFCL- Brasil, s/d, p.241-244.
LACAN,
J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In
Internacional dos Fóruns Escola de Psicanálise do Campo Lacaniano – Catálogo
2008-2012 ed. em português. Rio de Janeiro: EPFCL- Brasil, s/d, p.213-224.
LACAN,
J. Televisão. Versão brasileira,
AntonioQuinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
SOLER,
C. O tempo longo. In: Wunsch 11 Boletim
Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. CAOE:
2010-2012.
[1]
Psicanalista. Pós-graduada em
Saúde Mental –UNICAMP, Especialista em Saúde do Trabalhador –FIOCRUZ. Endereço:
Rua João Rosa Góes, nº1445 - Dourados/MS. Fone: 84128521/34213363.
E-mail: francinasousa@yahoo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário