AMOR E
DESEJO[1]
Marisa De Costa
Martinez[2]
O presente trabalho trata-se de uma questão
provinda de um cartel em andamento, constituído em 20/11/2012, inscrito pelo
FCL-MS, cujo tema geral é “o amor e suas fronteiras”. O tema subjacente, desde
o início, fora “o amor”. Posteriormente, construímos esse novo tema “o amor e
suas fronteiras”, considerando a especificidade de nossos encontros, a saber,
sem impeditivos fronteiriços. Dito de outro modo, a particularidade de nossa
cartel está nas reuniões via Skype, à distância, considerando que os membros
são de diferentes regiões de nosso extenso país. Daí surge uma primeira
questão: o amor faz fronteira com o desejo? De que forma?
Partindo-se do pressuposto de que,
tanto Freud quanto Lacan aproximam a teoria do inconsciente e estruturam a
teoria psicanalítica de acordo com diferentes abordagens do conceito de verdade
e de seu campo de produção, depreende-se, por um lado, de que o primeiro deu
ênfase ao conceito de prazer, e o segundo, por sua vez, o faz conceituando o
desejo, o qual está estruturado frente à falta-a-ser. Os textos psicanalíticos,
tanto freudianos (1912/1996; 1914/1996; 1921/1996) quanto lacanianos
(1958/1999; 1958-1959; 1971-1972/2000), que tratam da concepção de sujeito do
inconsciente, abordam, também, os conceitos de desejo e de amor. Deste modo,
discorreremos sobre algumas aproximações e afastamentos entre eles.
Com
o texto platônico do Banquete
entendemos que a confusão entre amor e desejo é pré-existente à psicanálise.
Vale ressaltar, que tal texto de Platão fora escrito por volta de 380 a.C. e
talvez seja o primeiro texto conhecido por tratar questões relativas ao amor.
Nesse texto, há duas questões de Sócrates que nos interessa destacar: “E é
quando tem isso mesmo que deseja e ama que ele então deseja e ama, ou quando
não tem?” (PLATÃO, 2006, p. 140); “Esse então [o amor], como qualquer outro que
deseja, deseja o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele
próprio e o de que é carente; tais são mais ou menos as coisas de que há desejo
e amor, não é?” (p.141). Deste modo, o autor evidencia que para amar, assim
como, desejar, é preciso não ter, ou seja, ser carente.
Nesse
sentido, frente à apresentação de Eros – deus do amor – Lacan retoma o texto
platônico para discorrer sobre a transferência em seu oitavo seminário e continua
utilizando o termo “mão” assim como Platão para fazer sua linda metáfora sobre
o amor:
Esta mão que se
estende para o fruto, para a rosa, para a acha que se inflama de repente, seu
gesto de pegar, de atrair, de atiçar e estreitamente solidário à maturação do
fruto, à beleza da flor, ao flamejar da acha: Mas quando, nesse movimento de
pegar, de atrair, de atiçar, a mão for longe o bastante em direção ao objeto,
se do fruto, da flor, da acha, sai uma mão que se estende ao encontro da mão
que é a de vocês, e neste momento e a sua mão que se detém fixa na plenitude
fechada do fruto, aberta da flor, na explosão de uma mão em chamas – então, o
que aí se produz é o amor (p. 72-73).
Em
nossa leitura, o excerto acima sugere que não há um objeto de amor
correspondido, diferentemente, por mais que o amante estenda para pegar o
fruto, qual seja, o objeto de amor, atiçando-o, o que ele encontra, por sua
vez, é justamente o amado. Este, por sua vez, também estende sua mão e, por
isso, o milagre que se dá, é justamente o encontro de dois amantes e não de um
amante com seu amado. Uma forma de compreensão disso seria retomar o ensino
lacaniano que destaca que não haveria comunicação de mensagem de um emissor
para um receptor, por tratar sempre um encontro de dois sujeitos – resultando
no mal-entendido do amor e da comunicação. Com efeito, observa que o amor é a
passagem súbita de objeto amado para aquele que deseja. Nesse sentido, o autor
afirma que a dialética do fenômeno amoroso em O Banquete se dá pelo
milagre da transformação do amado em amante. Inclusive, Soler destacou em seu
seminário de abertura do XIV Encontro Nacional da EPFCL que o desejo seria um
encontro não programado e assim, mais uma vez, ao nosso ver, amor e desejo se
aproximam. Vejamos a citação em que Lacan associa o amor ao encontro:
Esta virtude
está igualmente no amante, a saber, no modo pelo qual sua escolha se dirige,
segundo aquilo que ele vai buscar no amado. O que ele vai buscar no amado é
algo para lhe dar. Ambos vão se encontrar neste ponto que ele chama, em algum
lugar, de ponto de encontro do discurso, onde terá lugar a conjunção, a
coincidência (p. 76).
A partir do discurso de Sócrates em
O Banquete e da dialética hegeliana, Lacan defende que todo desejo
implica uma falta, “alguma coisa que ele não possui, algo que não é ele mesmo,
algo de que está desprovido, é desse tipo de objeto que ele tem desejo” (LACAN,
1960-61/2010, p. 149). Retomamos assim, nosso ponto de vista de que amor e
desejo possuem aproximações e afastamentos. Com efeito, Allouch defende que em
Freud amor e desejo eram equivalentes, diferentemente em Lacan. Entretanto, nesse
ponto, nossa leitura se opõe à assertiva de Allouch, uma vez que, ao nosso ver,
Freud não teria confundido amor e desejo, tanto que em 1912/1996, o autor faz
uma distinção entre a forma de amar e de desejar, tanto nos homens, quanto nas
mulheres. Inclusive, em 1921/1996, Freud volta a analisar a divergência entre
amor e desejo nos homens. Com a proposição lacaniana de que todo desejo implica
uma falta, poderíamos pensar, então, que quando amamos não desejamos, porque o
desejo está sempre em outro lugar?
Lacan (1957-1958) afirma que o
desejo e a morte só podem ser vistos obliquamente, lateralmente, assim como a
luz que, olhada muito de perto, cega. Neste caso, a questão do amor parece
implicar na questão do desejo. Poderíamos pensar que o campo amoroso também
carece ser analisado obliquamente? A esse respeito Lacan posteriormente responde
a nossa questão de forma afirmativa, de forma a aproximar amor e desejo:
É bem
claro que, quando se fala de amor, não se fala de outra coisa. Todos os
esforços que fazemos para situá-lo estão fadados de antemão ao fracasso. Para
tentar ver exatamente o que é isso, sem dúvida seremos obrigados a arrastar os
móveis de uma certa maneira, a restabelecer certas perspectivas, a colocar-nos
em certa posição mais ou menos oblíqua, dizer que não havia, forçosamente,
apenas isso, é evidente, é claro. Nem por isso deixa de ser verdade que no
plano do amor só havia isso (LACAN, 1960-1961/2010, p. 45).
Já no Seminário livro 10, o autor discute sobre os produtos da cultura
sublimados, dentre eles, o amor, e afirma que
“resulta daí que não podemos de modo algum, servir-nos do amor como
primeiro nem como último termo, por mais primordial que ele se afigure em nossa
teorização. O amor é um fato cultural” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 198). Nesse
sentido, Soler responde em recente entrevista: “No princípio da psicanálise, o
desejo foi a primeira e a única palavra da interpretação freudiana. No fim, com
Lacan, ele continua, mas não mais sozinho” (SOLER, 2013). Deste modo, vemos que
na psicanálise freudiana e lacaniana, o desejo e também o amor são marcados do
começo ao fim. No entanto, Lacan nos alerta que não podemos nos servir do amor.
E do desejo, como poderíamos nos servir? Seria a partir do desejo do analista e
promovendo que o analisante banque seu desejo?
Vejamos que nesse momento do percurso
teórico lacaniano é possível diferenciar os conceitos de amor e desejo, uma vez
que o autor defende que somente “[...] o amor-sublimação permite ao gozo
condescender ao desejo” (p. 199) pois, para ele, o amor é propício aos
aforismos, ou seja, a uma sentença moral breve. Desta forma, o que humaniza o
desejo humano é o amor. Vale ressaltar, que a possibilidade de aproximação do
amor a uma sublimação já estava em Freud, quando ele diferencia a libido
objetal sublimada [amor] cuja finalidade é diferente da “satisfação sexual”
(FREUD, 1914/1996, p. 101). Nominé, por sua vez, defende que o sujeito, embora
inconsciente, não pode gozar diretamente de seu objeto, uma vez que precisa
passar pelo desejo. Nesse sentido, entende a fórmula lacaniana do amor na
medida em que alcança a “orientação do desejo pelo gozo” (NOMINÉ, 2003, p. 49).
Soler, ao estudar o referido seminário lacaniano, enfatiza a função do amor
enquanto produto da cultura e sublimação de desejo, diferenciando ambos
conceitos, vejamos:
[...] o amor é
uma sublimação do desejo. Ele [Lacan] faz algumas observações sobre o fato de
que o amor é culturalmente fabricado [...]: o amor é um produto da cultura.
Podemos encontrar civilizações nas quais isso que nós chamamos de amor, no
sentido desse sentimento amoroso, não teria o mesmo lugar, não teria o mesmo
papel. O amor sublimação do desejo significa o amor que faz do desejo um valor
cultural. É por isso que Lacan insiste sobre o fato de que, para as mulheres, e
em particular o exemplo de mulher que ele toma, o desejo de seu homem importa
mais que tudo (SOLER, 2012, p. 100).
Nas
últimas páginas do Seminário livro 11 há uma passagem em que Lacan
afirma “sublinhando que o analisando diz em suma a seu parceiro, ao analista –
Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo que é mais do que tu –
o objeto a minúsculo, eu te mutilo” (LACAN, 1964/2008, p. 260). De forma
semelhante, Lacan trabalha, desde o Seminário livro 6 (1958-1959), a
dialética amor/objeto a ressaltando que o objeto tem que ser rejeitado como
objeto de amor, para advir como objeto causa. Para tanto, o autor utiliza como
ilustração o caso da morte de Ofélia, necessária para que, uma vez que ela
tenha advindo como causa, Hamlet possa passar ao ato desejante que, no seu
caso, é a ato de vingança da morte do pai. Nas palavras de Lacan, Ofélia vem
interrogar “o segredo do desejo” (LACAN, 1958-1959, p. 321), ao mesmo tempo em
que é “dissolvida enquanto objeto de amor” (p. 338). De amado para amante, de
objeto de amor para desejante, haveria uma constante de mudança de lugar. Os
trechos indicariam uma disparidade entre amor e desejo? Lacan, de forma
resumida apresenta que “o desejo não é, portanto, nem o apetite por satisfação,
nem a demanda por amor, mas a diferença que resulta da subtração do primeiro à
segunda, o próprio fenômeno de sua fenda” (LACAN, 1958/1998, 698). Ou ainda, a
disparidade estaria na abordagem de Lacan do amor, contrária à de Freud do amor
como repetição? Vejamos:
Insucesso do
inconsciente, o amor se funda num encontro, e num encontro bem-sucedido, para
sustentar que é possível – e portanto, necessário – fazer fracassar o desejo
inconsciente cuja lei é o encontro sempre faltoso. Por sua natureza, o amor
tende a se colocar para além da repetição: ele seria aquilo que não rateia.
(ANDRÉ, 1998, p. 258).
Com
a citação de André, entendemos que se repete o que fracassa, isto é, repete-se
na tentativa de encontrar a satisfação primeira, plena, mítica. Portanto a
repetição aponta para o fracasso. E no amor, diferentemente, haveria o
encontro. Mas será que o amor vai na direção contrária da repetição? Ou é na
via da repetição que ele a ultrapassa? Afinal se o amor é o encontro, ainda
assim é um encontro faltoso, fracassado, seria aquilo que mantém vivo o desejo
de encontrar a satisfação primeira e por fundamento perdida. Nesse sentido, retomando
a proposição lacaniana do amor como suplência da não relação sexual, a
impossibilidade estaria na relação e não no encontro amoroso.
Portanto,
se o amor configura-se como um fenômeno relacionado ao desejo, ao passo que,
deste também aquele se distancia. Deste feito, tanto um quanto o outro só podem
ser estudados obliquamente, isto é, a partir de afastamentos e aproximações com
outros conceitos psicanalíticos. Assim, o amor coincidiria com a sublimação do
desejo. Logo, a repetição aponta para o fracasso do desejo cujo objeto falta. E
no amor, diferentemente, haveria o encontro, algo de inédito, novo.
REFERÊNCIAS
ALLOUCH,
J. O amor Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.
ANDRÉ,
S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
FREUD,
S. Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor (Contribuições
para Psicologia do Amor II). In: Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro: Imago,
1912/1996.
______.
Sobre o Narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago,
1914/1996.
______.
Psicologia de Grupo e Análise do Ego. In: Edição Standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XI. Rio de Janeiro:
Imago, 1921/1996.
LACAN,
J. O seminário: Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1957-1958/1999.
______. A significação do
falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1958/1998.
______.
O seminário VI: O desejo e sua interpretação. 1958-1959. (Consultado na
versão digital em http://www.traco-freudiano.org).
______. O seminário, livro 8:
a transferência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2a ed.
1960-1961/2010.
______. O seminário, livro 10:
a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1962-1963/2005.
______. O seminário, livro 11:
os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1964/2008.
______. O seminário, livro 16:
de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1968-1969/2008.
______. O seminário, livro 20:
Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1972-1973/2008.
PLATÃO. O Banquete. (tradução, introdução e notas J. Cavalcante de Souza).
Rio de Janeiro: Difel, 2006.
SOLER,
C. Seminário de leitura de texto ano 2006-2007: Seminário A angústia, de
Jacques Lacan. São Paulo: Escuta, 2012.
SOLER,
C. Entrevista de Colette Soler – A causa do desejo e suas errâncias. Jornal
Estado de Minas, Belo Horizonte, caderno em Cultura, 13/10/2013.
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